Na garoa
Para Andressa Mourão
Cai uma garoa incrivelmente calma. De olhar tranqüilo. O céu negro observa o movimento das pessoas lá em baixo, todas de capa de chuva ou guarda chuva nas mãos. Apenas uma estava sem proteção contra a água, era Maria.
Cabisbaixa, olhar vago e castanho. O cabelo molhado cobria os ombros e exalavam um cheiro não mais do que molhado. As mãos dançavam em sincronia com as gotas. Maria estava com uma roupa incrivelmente simples, de longe parece um pijama. Estava voltando de uma missão: comprar veneno. Não um simples veneno para baratas, mas um veneno para suicidas. Deprimidos mesmo. Agora caminhava lentamente para um bar. Precisava beber um pouco de coragem.
Acho que ela está indo ao Bar do Gaúcho, ele é o único existente por aqui. Bastante famoso.
Maria entrou no Bar do Gaúcho.
No canto inferior da tela, um homem conversa com uma samambaia, aparentemente dá em cima dela.
- Eu quero te aguar, gatinha.
Acho que está bêbado, copo de cerveja na mão.
Maria foi ter com o balcão. Pediu uma bebida qualquer, não escutei, pois sussurrou.
Com o polegar e o indicador pressionados no copo, ergueu-o até a boca e sorveu o líquido com apenas um gole. Depois pediu água.
Tirou do bolso um frasco que apesar de não ter uma caveira e um aviso de perigo era veneno. Colocou no balcão.
- Não se mate. – disse uma voz inesperada, tão inesperada como uma declaração de amor em um quarto de motel.
O dono da voz era um senhor. 45 anos mais ou menos. Tinha na cabeça um boné do PMDB, algum candidato para a prefeitura, possivelmente lhe deu.
- Como sabe?
- Você pediu água, e não tem um guarda chuva. Nem uma toalha. Chove todo dia aqui.
Só agora percebeu o olhar de diamante do homem, e as barbas esbranquiçadas.
- Você não pode morrer, não aqui, em um bar.
Maria não se incomodou com a intromissão do homem
Não havia juntado coragem o suficiente, e tampouco queria morrer sem conversar. Chegou a refletir, sentiu-se um espelho velho e quebrado, mas refletiu.
- Quero saber ao menos um bom motivo para você querer morrer, moça.
- E eu um motivo para você ter falado comigo.
- É um bar, você é bonita, e eu já passei dos quarenta. Se aos 20 eu não pedia licença, aos 43 eu não vou dizer boa noite. Apenas puxei assunto, porque acho que devo te salvar. Morre não, mulher. Você não tem nem 18 anos direito. Deve ter cheiro de mijo nas calças ainda.
- Só quero morrer.
- Por quê?
- Hoje eu acordei assim. Olhei para o teto e só vi o teto, olhei para o chão e só vi o chão. Olhei para o meu papagaio e só escutei o meu nome. Fui para a rua, e vi que a chuva só era chuva. Joguei-o fora (o guarda chuva) e estou andando para lá e para cá até agora. Eu olhava para as pessoas e só via pessoas. Eu chorei e só derramei lágrimas. E eu pensei no amanhã e só consegui visualizar o sol nascendo. Então eu peguei o meu único dinheiro, o fim da mesada, mamãe não é rica, e comprei esse veneno aqui. Me falaram que mata até um cavalo. Então eu vim fazer o teste final, vim pro bar tomar coragem. Não para morrer, mas para ficar viva. Mas eu olho para essas pessoas e só vejo bêbados.
- Eu não bebo.
- O que faz em um bar?
- Salvo suicidas.
Maria agora refletia como um espelho limpo e completo. Talvez esteja vendo algo além de um velho barbado e simples.
- Na verdade não é de hoje. A minha vida toda eu só enxerguei paredes, pessoas, teto e bêbados. Trabalho como camareira de motel, e de noite cuido do bar da mamãe.
- Isso é engraçado, sua mãe tem um bar e você vem beber em outro.
- Lá não vende refrigerante.
Então era isso que ela estava bebendo.
- Bom, se quer morrer...vai em frente.
Maria ficou surpresa. Achou que ele tentaria impedi-la ainda.
- Ah, desculpa! Me esqueci. Tenho que tentar uma última vez...Então, você gosta de mim?
- Não sei, te conheci agora. Mas é bom conversar contigo.
- Sua mãe...Ama você?
- Com certeza não.
Um questionário passou pelo bar. Talvez o homem tentasse apenas ganhar tempo, talvez ele estivesse se divertindo, saindo do tédio.
Cansado de perguntas, o velho, que não disse o seu nome – nem diria sob tortura, pegou o frasco.
- Já passou meia hora, tempo suficiente para você me estimar.
Então bebeu.
O velho tombou no chão minutos depois, mas ninguém observava isso. Só Maria. Maria apenas. Maria paralisada, Maria em choque. Maria triste, Maria chorando. Caiu a ficha. Queria morrer, se mataria. Sofre tanto pela perca do amigo inesperado que chegou a imaginar a dor da mãe, que mesmo não tendo um bom relacionamento com ela, teria coração o suficiente para sentir essa dor. Se ela sentiu por um desconhecido no bar...Pensou na dor do padeiro, na dor do pai, que nem mora aqui, pensou na dor de todo mundo. Até na sua.
As pessoas socorreram o velho, que já estava morto. Maria saiu correndo. Alguém gritou algo que não escutei, talvez a acusassem de assassinato. Mas ela não ouviu, ela não queria saber. Sentiu mesmo foi uma imensa vontade de abraçar a mãe. De comprar carioquinha, mas só amanhã. Correu. E estava muito próxima de casa. Desesperada, atravessou a rua e não pôde ver um carro que ia em disparada.
Maria atropelada. O carro não parou, acho que ia ao hospital, deu para ver uma mulher grávida dirigindo. Louca para se proteger, mais louca ainda para proteger a cria.
Maria então não se mexia.
- Quero viver, quero abraçar minha mãe.
- Agora não dá mais, moça. Sinto muito. – disse o médico para a mãe de Maria.
4 comentários:
o que é carioquinha que ela queria comprar? =p
Respondendo a pessoa acima, carioquinha é um tipo de pão, chamado em outros cantos de pão d'água, muito bom por sinal!
Cara, muito bom esse conto. Até pensei em enumerar as partes que foram geniais, mas perdi as contas! Mas, principalmente, acho que você falou o que um texto que fale de suicídio deve falar. Suicídio é algo muito egoísta, é não pensar no sofrimento dos outros.
Enfim, tá mara!
"- O que faz em um bar?
- Salvo suicidas"
Gostei do velho cínico.
Amei saber que tenho um sobrinho escritor e dos bons...........parabéns...
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